A construção de uma rodovia na Bolívia, com financiamento do
BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), colocou líderes indígenas bolivianos em pé de guerra com o presidente
Evo Morales e com a construtora brasileira
OAS.
A reportagem é de
Fabio Murakawa e publicada pelo jornal
Valor, 09-08-2011.
A estrada, que ligará os Departamentos (províncias) de
Cochabamba e
Santa Cruz, terá 306 km e começou a ser aberta no último dia 3 de junho. A obra está estimada em US$ 415 milhões, dos quais US$ 322 milhões veem de financiamento do banco brasileiro.
O foco da tensão é o trecho 2 da estrada, com 177 km de extensão e que atravessa o
Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), uma reserva de 1,091 milhão de hectares onde vivem entre 10 mil e 12 mil nativos dos povos moxeño, yurakaré e chimane.
Após semanas de um debate acalorado com o governo, os líderes indígenas locais decidiram na sexta-feira não permitir que a estrada corte o seu território, colocando em risco a execução da obra financiada pelo Brasil.
"Nós realizamos um encontro, uma assembleia, e a decisão foi negar a passagem do trecho 2 da estrada porque ele atenta contra a integridade do parque", disse ao Valor
Adolfo Moye, presidente da Subcentral Tipnis, que representa as 64 comunidades indígenas do território. "Foi um `não` rotundo e inegociável. Não vamos aceitar."
Além do impacto ambiental sobre suas terras,
Moye disse que a rodovia vai estimular a chegada de "colonizadores e a proliferação do cultivo da coca na região". Ele afirmou ainda que a obra despertará o interesse de empresários pela exploração de madeira e hidrocarbonetos - cuja existência não é comprovada por nenhum estudo, segundo fontes - dentro da reserva. E criticou o governo brasileiro e a construtora.
"Essa estrada não leva em conta o valor cultural e social das comunidades nem o serviço que se presta ao mundo ao preservar o ambiente. Há hidrocarbonetos [na reserva], e a segunda parte do projeto é explorá-los", disse
Moye. "O Brasil e a
OAS estão pondo em risco a existência de comunidades em nome do desenvolvimento econômico e empresarial."
Dos três trechos previstos para a estrada, o 2 é o único que ainda não começou a ser construído. Questionado sobre o tema por jornalistas locais na semana passada, o embaixador do Brasil em La Paz,
Marcel Biato, explicou que os recursos do
BNDES para esse trecho somente serão liberados depois da conclusão dos estudos de impacto socioambiental, um pré-requisito do banco.
A declaração técnica do embaixador, no entanto, serviu para esquentar o debate. Alguns meios locais chegaram a noticiar que o Brasil havia "congelado" o desembolso de recursos para a obra. A notícia gerou um mal-estar no governo boliviano e irritou
Evo Morales. "Sim, ainda falta fazer consulta [estudo de impacto ambiental] para o segundo [trecho da obra], mas isso não é uma atribuição do governo do Brasil, e sim uma responsabilidade do governo nacional", disse
Morales em entrevista coletiva.
O presidente chegou a chamar os opositores da obra de "inimigos da pátria". E sugeriu que os líderes cocaleiros conquistassem as mulheres indígenas da região para que seus povos aceitassem a construção da rodovia, o que provocou a ira de feministas no país.
A construção da estrada expõe conflitos internos na Bolívia, mas também divide opiniões dentro do governo brasileiro, segundo apurou o Valor.
Uma corrente a vê como uma obra fundamental para a integração do país vizinho, que permitirá escoar a produção agropecuária entre
Beni e
Cochabamba e levará desenvolvimento econômico à região. Outra parte acredita que o financiamento do
BNDES não deveria ter sido aprovado antes de um consenso entre governo e índios.
"Teremos problemas, qualquer que seja a posição que tomemos", disse ao Valor uma fonte do governo familiarizada com o tema. "Se o
BNDES não liberar o financiamento, a relação entre
Evo Morales e o Brasil vai estremecer. Se liberar do jeito que está, o Brasil será lembrado como um espoliador por décadas. É a crônica de um problema anunciado."
Além disso, há temor, tanto por parte dos índios quanto de setores no Brasil, quanto à proliferação indiscriminada do plantio de coca na região. A plantação de coca já avança em vastas áreas dentro do parque, o que preocupa os indígenas. Teme-se ainda que seja criada, com a rodovia, uma nova rota para o tráfico de cocaína, cujo principal destino seria o Brasil.
Segundo o
BNDES, ainda não foi feita nenhuma liberação de recursos para a rodovia, que liga as cidades de San Ignacio de Moxos (Beni) e Villa Tunari (Cochabamba). Isso porque as obras recém começaram, e o dinheiro é liberado de acordo com a execução dos trabalhos. Mas os contratos para os trechos 1 e 3 já estão assinados, o que ainda não ocorreu em relação ao trecho 2.
Com 177 km de extensão, o trecho 2 responde por cerca de 40% do valor total da rodovia. O início das obras está previsto para agosto de 2012, disse ao Valor
Augusto César Uzêda, diretor-superintendente da área internacional da OAS. Ele afirmou que a estrada deverá ser concluída em 2014.
Uzêda disse que ainda não há um traçado definitivo para o trecho da rodovia que corta o parque, o que está sendo discutido entre o governo local e os indígenas. "Hoje se busca um traçado que atenda às necessidades da população e que tenha o menor impacto ambiental possível", afirmou, acrescentando que a
OAS não participa dessa discussão.
Diferentes fontes do governo brasileiro estimam que um eventual desvio na estrada acrescentaria de US$ 60 milhões a US$ 250 milhões ao valor total da obra, exigindo, inclusive, mais dinheiro do BNDES. Mas, para ser viável, a estrada precisa atravessar a reserva.
A construção da rodovia é fruto de um acordo entre o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em seu segundo mantato, e Evo Morales. Em 2009, o projeto foi alvo de uma investigação da Controladoria-Geral da Bolívia por suspeita de superfaturamento e favorecimento. A OAS foi a única empresa a participar da licitação da obra, realizada em 2008.
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Índios declaram guerra a "estrada brasileira" na Bolívia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU